sábado, 3 de abril de 2010

ESTABELECIDOS E OUTSIDERS NAS TORCIDAS ORGANIZADAS






O desconforto causado na sociedade pelas atitudes violentas das Torcidas Organizadas de futebol é um fato que vem ocorrendo com relativa freqüência nos estádios paranaenses, principalmente no final da década de 90 e início do século XXI. Objeto de interesse nas pesquisas das Ciências Sociais, os conflitos entre torcedores são analisados em diversas situações, sob vários aspectos e à luz de diferentes teorias, com o intuito de buscar a compreensão sobre este processo de construção da violência, que tantos prejuízos traz à comunidade. Este trabalho tem como objetivo analisar uma das configurações menos comuns de confronto entre facções de torcedores: A violência entre duas Torcidas Organizadas de uma mesma equipe de futebol. Para o desenvolvimento desta análise, optou-se pela investigação da briga entre as torcidas Os Fanáticos e Ultras, ambas do Clube Atlético Paranaense, ocorrida no dia 04 de outubro de 2000, momentos antes de uma partida contra o Guarani Esporte Clube, válida pela Copa João Havelange.

Observa-se que as Torcidas Organizadas lutam pelo controle do poder no local onde estão inseridas e que esta luta é normalmente desempenhada através da violência, verbal e física, contra seus oponentes, normalmente torcedores de equipes adversárias. Não obstante, pergunta-se: como ocorre o processo que leva à geração de conflitos entre duas facções, aparentemente semelhantes em suas características sociais gerais, inclusive sendo torcedoras de uma mesma equipe de futebol? Para compreender este processo, além de suas aparentes causas superficiais, procurou-se na leitura de Norbert Elias, mais precisamente em seu trabalho “Os Estabelecidos e os Outsiders”, embasamento teórico que auxiliasse na compreensão deste fenômeno. Acredita-se que este estudo de Elias encaixa-se peculiarmente nesta proposta de pesquisa e dará suporte teórico necessário à investigação.



ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE AS TORCIDAS À LUZ DA TEORIA DE ELIAS

Na obra “Os Estabelecidos e os Outsiders”, Elias investiga dois grupos de moradores de uma cidade, que não possuem diferenças de nacionalidade, ascendência étnica ou cor da pele, nem tampouco de ocupação, renda ou nível educacional. O que difere os dois grupos é o tempo de residência no local, ou seja, um grupo encontra-se instalado na região há algumas gerações, enquanto que o outro é formado por recém-chegados; motivo suficiente para que o primeiro grupo não aceite o segundo. Esta configuração é também encontrada na relação entre as duas torcidas organizadas do Clube Atlético Paranaense.

A Torcida Organizada Os Fanáticos, fundada em 24 de outubro de 1977, adquire com o passar dos anos a característica de ser a única torcida organizada do Clube Atlético Paranaense. Em meados dos anos 90 a torcida organizada já é legalmente registrada com registro de estatuto, C.G.C, registro de marcas e patentes, entre outros, construindo inclusive uma sede própria e fundando a Associação Recreativa Torcida Organizada Os Fanáticos. Reconhecida pela presença em todos os jogos do Atlético, a torcida tornou-se notável e marcante pelo irrestrito apoio à equipe paranaense.

Em 1992, surge a Associação Independente Ultras do Atlético. Por ser uma torcida organizada com uma história recente e um efetivo muito menor de associados, em comparação à Os Fanáticos, a Ultras sempre foi caracterizada pela imprensa e torcedores, como a segunda torcida organizada do Atlético. Porém mesmo com esse rótulo, sua presença passa a caracterizar uma disputa pelo status de incentivadora fiel da equipe paranaense.

Apesar de torcerem por uma mesma equipe, a separação entre as duas torcidas sempre foi evidente. Tal fato é reconhecido quando observa-se a disposição das torcidas no estádio e suas condutas durante os jogos. As duas torcidas posicionavam-se em locais pré-estabelecidos, uma afastada da outra. Salienta-se ainda que o local onde Os Fanáticos instalam-se é claramente mais confortável e de melhor visibilidade com relação ao campo de jogo, do que o espaço onde a Ultras alocava-se. Acontecimento semelhante é percebido na obra de Elias, quando o autor comenta sobre a área de Winston Parva onde residiam os outsiders:



“Os antigos residentes diziam que essa área não fora desenvolvida por Charles Wilson por ser pantanosa e infestada de ratos; e, como veremos, os “aldeões” continuaram a se referir a ela como “beco dos ratos”. Um entrevistado, membro do conselho municipal, lembrou-se de que os moradores ilustres da “aldeia” haviam protestado junto ao conselho conta o aproveitamento dessa área vizinha a suas terras.”



Percebe-se que escolha de um bom espaço, tanto no Estádio Joaquim Américo , quanto em Winston Parva, dá-se pelo tempo de estabelecimento no local, que caracteriza a detenção do poder e a discriminação a quem não pertence ao grupo estabelecido. Neste contexto, torna-se natural a situação dos estabelecidos, de ocuparem os melhores lugares e não permitirem aos outsiders o mesmo direito.



O FATO NORTEADOR DA PESQUISA E SUA INTERPRETAÇÃO



Em 04 de outubro de 2000, momentos antes do jogo entre o Clube Atlético Paranaense e o Guarani Esporte Clube, válido pela Copa João Havelange, ocorreu o fato que norteia esta análise. Um jogo normal do campeonato, em que a equipe paranaense encontrava-se numa posição intermediária de classificação e que não demonstrava nenhum risco aparente de brigas entre torcedores. Porém, momentos antes do início da partida, ocorre uma discussão pelo espaço destinado às faixas das torcidas organizadas, como observa a nota do jornal local: “Cinco minutos antes de começar a partida, as duas facções de torcedores do Atlético, a ‘Ultras’ e ‘Os Fanáticos’, começaram a brigar por motivo fútil: o melhor posicionamento de faixas dentro do estádio”.

O desentendimento citado toma a dimensão de um confronto de gangues, levando, inclusive, ao ferimento de um torcedor de Os Fanáticos, por um golpe de faca, desferido por um torcedor da Ultras. A reportagem abaixo descreve o fato:



“Uma vergonha. Num tempo em que todo mundo fala em paz no futebol, a Torcida Organizada Os Fanáticos deu o pior exemplo possível, ontem, nas arquibancadas da Arena da Baixada. Uma pancadaria sem tamanho, na curva de fundos, antes mesmo de a bola rolar. Numa atitude pretensiosa e totalmente desprovida de educação, alguns integrantes da torcida avançaram sobre a outra facção do Rubro-Negro, a Ultras, que estava colocando uma sua no lugar, como se estivessem tomando posse de uma terra improdutiva. O ato ridículo, aos olhos dos presentes, foi rechaçado pelos demais torcedores que estavam na Baixada, que responderam com vaias. Achando-se os donos razão, os integrantes da organizada reagiram com gritos de guerra, que não merecem reprodução em qualquer mídia.”



Talvez analisar atos de violência entre torcidas de um mesmo clube seja complicado, considerando que se está acostumado a presenciar brigas entre torcidas de times rivais. Todavia esse peculiar caso deixa-nos traçar alguns paralelos com as escritas elisianas. Em “Os Estabelecidos e os Outsiders”, Norbert Elias, ao descrever o cotidiano de Winston Parva, relata:



“Não havia diferenças de nacionalidade, ascendência étnica, “cor” ou “raça” entre os residentes das duas áreas, e eles tampouco diferiam quanto ao seu tipo de ocupação, sua renda e ser nível educacional – em suma, quanto a sua classe social. As duas eram áreas de trabalhadores. A única diferença entre elas era a que já foi mencionada: um grupo compunha-se de antigos residentes, instalados na região havia duas ou três gerações, e o outro era formado por recém-chegados.”



As torcidas analisadas neste trabalho possuem entre si características semelhantes às existentes entre os grupos estudados por Elias. Os dois grupos são formados por jovens de mesmo nível sócio-econômico e intelectual, residentes basicamente em bairros de periferia. As diferenças entre os componentes dos grupos são desconsideráveis, porém entre os grupos, um parâmetro é diferenciador: o tempo de existência como torcida organizada do clube. Esta diferença torna Os Fanáticos o grupo estabelecido, que considera os sócios da Ultras como outsiders.

Em Winston Parva, como nas torcidas organizadas a exclusão e/ou a agressão se deve ao medo de que o grupo outsider venha a ter o domínio do poder, deixando os estabelecidos submetidos aos novatos. Essa relação conforme Elias, torna-se normal nestes grupos, ficando difícil achar-se os culpados:



“Podemos ficar tentados em por a culpa pelas tensões entre os residentes antigos e novos no outro lado. Na verdade, no estado atual de nossas técnicas sociais, essas tensões eram o concomitante normal de um processo durante o qual dois grupos antes independentes tornam-se interdependentes. Se considerarmos a configuração resultante da recém-criada interdependência, na condição de vizinhos e membros de uma mesma comunidade, de grupos que eram estranhos entre si, poderemos ver como teria sido difícil evitar as tensões. [...] Em regra, tais comunidades temem que os novatos não se adaptem às suas normas e crenças; esperam que eles se submetam às suas formas de controle social e demonstrem, de modo geral, a disposição de “se enquadrar”.



O grupo estabelecido enxerga o outsider como alguém que vem atrapalhar ou incomodar a ordem já estabelecida do local e que é incapaz de merecer os mesmos direitos e a consideração do primeiro. E este pensamento é reforçado pelo forte poder de coesão e controle exercido por um grupo estabelecido, que induz seus indivíduos a não abrirem espaço para a relação com pessoas que não façam parte deste grupo. Esta discriminação é resultado de uma cultura que é formada de uma forma arbitrária e que responde aos interesses de poder de quem está no comando dos grupos. Desta forma mantém-se garantido o domínio das ações em determinado espaço de convivência.

Não se trata de justapor um modelo, ou criar uma situação de causa e efeito entre as torcidas, mas, a partir de uma situação empírica, buscou-se compreender a dinâmica existente nas arquibancadas dos campos de futebol e que acabaram resultando em um processo de exclusão no qual a torcida mais antiga acaba se considerando estabelecida e com isto gozando de todos os direitos a ela atribuída (melhor local no estádio, maior, mais poderosa). E quando os mais novos não assumem o seu lugar de outsiders ( inferiores, excluídos), esta situação é resolvida através de uma forma rudimentar de se conseguir o poder, ou seja, pela força.

Quando este tipo de situação de falta de controle ocorre, as conseqüências são inimagináveis. No caso estudado, especificamente, ocorreu a extinção da torcida mais nova, o que permite afirmar, ou quem sabe confirmar, uma certa hegemonia do grupo que se considera estabelecido e que hoje permanece exclusivo nas arquibancadas.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



Elias, Norbert. Os Estabelecidos e os Outsiders. 1ªed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.



Gonçalves, Moises. Liberado o autor das facadas. Tribuna do Paraná, Curitiba, 07 out. 2000. Caderno de Esportes.



Gonçalves, Moises.__________________________. Tribuna do Paraná, Curitiba,

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