Modernidade social e a
contemporaneidade do "orientalismo’.
Resumo: O texto é uma introdução à
tese d’Orientalismo de Edward Said. Pretende-se demonstrar que a teoria
política e social moderna era enraizada em perspectivas etnocêntricas. Em
conclusão, argumenta-se que o discurso do "choque de civilizações" é
um esquema explicativo intentando re-modelar e reformar o Outro, mantendo a
contemporaneidade das representações coloniais.
Palavras-chave: Teoria Política
Pós-Colonial; Modernidade e Eurocentrismo; Pensamento Social e Etnocentrismo;
Colonialismo; Pós-Colonialismo
O legado de Edward Said para uma
hermenêutica pós-colonial e não-etnocêntrica"Aqui, contudo, o pensamento
burguês depara com uma barreira intransponível, posto que seu ponto de partida
e seu objetivo são sempre, mesmo de modo inconsciente, a apologia da ordem de
coisas existente ou, pelo menos, a demonstração de sua imutabilidade.
‘Portanto, já houve, mas não há mais, história’, diz Marx, reportando-se à
economia burguesa. E esta afirmação é válida para todas as tentativas do
pensamento burguês por assenhorear-se, pelo pensamento, do processo
histórico" (LUKACS, 1960, s.p.; g. n.).
"A modernidade ocidental,
dominada pela razão metonímica, não só tem uma compreensão limitada do mundo,
como tem uma compreensão limitada de si própria" (SANTOS, 2002, pp. 7-8).
Temos por hipótese que o mito
fundador da modernidade fez-se escorado na percepção arquetípica do Outro
não-Europeu (e demais sociedades ocidentais), representando-o como seu
antagônico extremo. A modernidade e iluminação do Ocidente radicaram-se nas
imagens da sua contraparte, o obsoleto e obscuro Oriente. Portanto, a narrativa
da modernidade baseou-se, sobretudo, na premissa iluminista e na enunciação
universalista e unidirecional da "civilização", em disputa e
antagonismo contra a barbárie. De outro modo, a feitura, no imaginário social
ocidental de sua própria "civilização" impunha, como requerimento
indispensável, a produção de sua contraparte, o Outro incivilizado. O
colonizador faz com que o colonizado seja o seu reverso absoluto. O trabalho
parte de uma premissa: "as ciências nascem e evoluem em circunstâncias
históricas bem determinadas" (JAPIASSU, 1991, p. 66), de modo que
"[o] conhecimento é, por essência, uma obra temporal" (Id., ibd., p.
68). Em idêntico sentido, Gaston Bachelard asseverou que "os valores
ideológicos (...) intervêm na prática científica" (Id., ibd., p. 73),
ainda que de modo inconsciente, por meio de operações psíquico-ideológicas.
Esse modelo binário-antagônico,
do europeu como superior, tal qual delatado por Edward Said (1993; 2007),
permeia toda a teoria social e (por que não?) as ciências humanas [01]. Karl
Marx celebrava o avanço do mercado mundial e a universalização do sistema
capitalista como uma forma de dissolver as formações econômicas dissonantes e
modos de produção não-ocidentais, organizações sociais estas então descritas como
primitivas. Em outros termos, tal contradição poderia ser formulada como o
moderno (capitalismo) contra o antigo (não-capitalista) (SAID, 2007). O
parisiense Émile Durkheim, ao apreciar formas religiosas não-europeias,
empregou uma tipologia nada "neutra": sua terminologia qualificava-as
como "primitivas", "caducas" e, finalmente,
"umas podem ser ditas
superiores às outras no sentido em que elas põem em jogo funções mentais mais
elevadas, são mais ricas em idéias e sentimentos, nelas figuram mais conceitos,
menos sensações e imagens, sua sistematização é mais engenhosa" (DURKHEIM,
1978, pp. 205-206 apud PRAXEDES, 2008, s.p.).
Outro exemplo é Max Weber. O
sociólogo alemão questionava por que, em territórios não-europeus, "nem o
desenvolvimento científico, nem o artístico, nem o político, nem o econômico
seguem a mesma via de racionalização que é própria do Ocidente" (apud
HABERMAS, 2000, p. 3), implicando a contradição entre o racional ocidental e o
irracional oriental. Portanto, o pensamento social moderno focou-se em uma
suposta cientificidade contra as trevas da religiosidade - não uma
religiosidade qualquer, mas edificou-se como uma estrutura ideológico-cultural
contra aquelas não-cristãs/não-europeias e com um projeto político específico:
facilitar a expansão do colonialismo (SAHLINS, 2000; SAID, 2007)
A constatação da heterogeneidade
cultural foi seguida por um processo de escalonamento e hierarquização, tendo
como ponto referente a sociedade europeia, com suas formas políticas
(Estado-Nação soberano, de sistema democrático representativo e tripartido em
competências e funções) e econômico-institucionais (livre-mercado escorado pela
propriedade privada dos meios de produção e repartição de renda, produção e
regime de propriedade e poder de acordo com classes sociais). Importa mencionar
que o surgimento do Estado-Nação e a expansão colonial são circunstâncias
históricas interdependentes. O conceito jurídico de soberania foi fundamental
para criar a "dinâmica da diferença" entre o colonizador e o colonizado,
estipulando uma distinção de forma política (concepção de Estado) e de culturas
(ideia de Nação, formatando a palavra gemelar do substantivo Estado). Aqueles
com a forma política descrita como superior, in casu,o Estado imperialista,
criaram, posteriormente, a narrativa do direito à conquista do colonizado
exatamente porque esse não era "soberano" – e não era soberano porque
não era um Estado-Nação, em singular circularidade argumentativa (ANGHIE, 2006;
MIEVIELLE, 2005). Finalmente, a interatividade entre o fenômeno político e o
acontecimento econômico da colonização não pode ser descurado.
Essa ligação se explica com a
iminente motivação econômica do colonialismo, a beneficiar-se de custos
salariais reduzidíssimos na colônia (pela hiperexploração da força de trabalho)
e da expropriação de terras e de matérias-primas. Finalmente, a consolidação do
fenômeno colonial (ele próprio parte da engrenagem capitalista mundial)
fomentou o capitalismo nas metrópoles: "O mercado colonial servia de
alavanca para o desenvolvimento da produção mercantil das metrópoles,
particularmente da produção manufatureira" (OLIVEIRA, 1985, p. 97). A
circularidade do eurocentrismo com o sistema do capital também é relatada por
Samir Amin. Para ele, com a necessidade contínua e expansiva de reprodução do
capital em escala mundial, o sistema capitalista exigia o universalismo, já
que, em abstrato-ideológico, não poderia conceber regiões e culturas diferentes
como imunes ao seu alcance. Em concreto, a diferenciação econômica foi apropriada
e hiperexplorada para melhor aproveitamento do capitalismo, apresentando o modo
de produção europeu como o estágio econômico-social completo, desejável e o
único possível, gerando o binômio centro-periferia [02], explicado pelo
desenvolvimento desigual (AMIN, 1988).
A diferenciação intercultural, ao
invés de servir para a tolerância, diálogo e vivência plural, deu-se sob os
formatos da exploração colonial. Os conhecimentos europeus formaram um corpus
analítico e descritivo do Outro permeado por estereótipos e figuras retóricas
para assentar a supremacia geoeconômica e político-cultural do imperial,
facilitando e permitindo o esbulho colonial. Essas concepções
científicas/intelectuais, no mais, extrapolaram as limitadas guaritas das
instituições públicas, da tour d’ivoire dos pesquisadores sociais e dos demais
atores com poder decisório, chegando ao momento de ideologia do cotidiano.
Assim, os enunciados orientalistas internalizaram-se no pensamento social
contemporâneo, obtendo a posição de hegemonia cultural mesmo nas sociedades
submetidas à exploração do colonizador. Dessa forma, "[a] descolonização
do imaginário ea desuniversalização das formas coloniais do saber aparecem
assim como condições de toda transformação democrática radical destas sociedades"
(Lander, 2007, p. 2, destaque no original). Os homens e mulheres no Oriente
foram percebidos ora como inexistentes [03], ora como dispensáveis [04] para a
empreitada imperialista ou, ainda, como incultos/selvagens/bárbaros. É o
procedimento de manufatura do ausente, como versado por Boaventura de Sousa
Santos:"o que não existe é, na
verdade, activamente produzido como não existente, isto é, como uma alternativa
não-credível ao que existe. (...) Há produção de não-existência sempre que uma
dada entidade é desqualificada e tornada invisível, ininteligível ou descartável
de modo irreversível" (SANTOS, 2002, pp. 11-12).
VÍDEO SOBRE ORIENTALISMO
A própria ideologia colonial,
fundou-se na hierarquização cultural em uma estrutura de pensamento em que,
para afiançar a superioridade do colonizador, é preciso transformar o
colonizado em bárbaro (CÉSAIRE, 2000). Esse tratamento dispensado ao Outro,
muitas vezes não se conforma em alocar a cultura e "raça"
colonizadora em status superior, passando para além da inferiorização do
colonizado (dialética do Superior-Inferior). É preciso mais: o colonizado é
destituído do semblante humano e, ato contínuo, é desumanizado e
"animalizado" (perfazendo uma dialética entre Humano-Bestial)
(SARTRE, 1991, p. 45). "E, de fato, a linguagem do colono, quando fala do
colonizado, é a linguagem da zoologia [05]" (FANON, 1991, p. 73). Nesse
esteio:"Além disso, ao fabricar a
ideologia do colonialismo, ao tentar estabelecer a tese da sua superioridade,
que é puramente circunstancial e histórica, o colonizador desemboca
inevitavelmente no racismo. Ora, em que consiste o racismo? Em converter em
"natureza" o que é apenas "cultural", ou, com outras
palavras, em converter o fato social em objeto metafísico, em
"essência" intertemporal. Para justificar, para legitimar o domínio e
a espoliação, o colonizador precisa estabelecer que o colonizado é por
"natureza", ou por "essência", incapaz, preguiçoso,
indolente, ingrato, desleal, desonesto, em suma, inferior" (CORBISIER,
1977, p. 9).
Superados esses traços
preliminares, adentramos, agora, propriamente na temática central do texto. A
obra "O Orientalismo" de Edward W. Said, foi originariamente
publicada em 1978. Usando como procedimento de seleção e delimitação dos dados,
Said debruçou-se sobre as ressurgentes representações do homem e da região
meso-oriental na cultura [06] francesa e britânica. Para esse professor da
Universidade de Columbia, o modo como apreendemos o mundo não é neutro, mas
defletido por configurações psíquico-sociais e ideológico-simbólicas,
desfigurando a compreensão que temos do objeto a ser manuseado nessa intervenção
cognoscível-inteligível [07] (SAID, 2007). Tais "grilhões forjados pela
mente" se impõem como óbices à compreensão e "desvendamento
genuíno" do Outro/Oriente (SAID, 2007, p. 19). O literato palestino,
ademais, lança, de antemão, um projeto delineado como o desvelar das estruturas
prejudiciais de entendimento para inquiri-las e subvertê-las (MOOTZ III, 2006,
p. 7).
Na obra, seminal trabalho do
pós-colonialismo, o pensador palestino atesta que o "O Oriente" tal
qual apresentado nas narrativas não possui constância e estabilidade, mas é
socialmente fabricado. O ponto fulcral da tese de Said é a delação de que os
enunciados científicos não são dotados de objetividade e, desse modo,
desprovidos de visões particulares de mundo do pesquisador – ao contrário, é,
com usual constância, radicada em percepções estereotipadas ou pior, tomada, de
forma consciente, por interesses econômicos e sócio-ideológicos. Ademais, essas
descrições do Oriente são regidas por um repertório temático que, impregnado de
doutrinas de superioridade eurocêntrica e racismo, formalizam e atualizam um
conjunto de visões e narrativas dogmáticas do oriental (SAID, 2007, p. 35). O
Orientalismo, como prática descritiva, não é individual, resultante discursivo
de um só autor, mas um coletivo de ideias e trabalhos "produzido por um
número quase incontável de autores individuais (...)" (SAID, 2007, p. 35).
Essas concepções etnocêntricas "produziram", no imaginário social,
uma região inteira como sendo "uma paisagem árida à espera de que o poderio
americano venha construir um modelo sucedâneo de ‘democracia’ de livre mercado
(...)" (SAID, 2007, p. 15). Nesse sentido, em decorrência da proximidade
entre os intelectuais e o poder político-econômico, o Orientalismo formatou-se
como um saber para a dominação e o controle. Como saber,
"(...) o Orientalismo pode
ser discutido e analisado como a instituição autorizada a lidar com o Oriente –
fazendo e corroborando afirmações a seu respeito, descrevendo-o, ensinando-o,
colonizando-o, governando-o: em suma, o Orientalismo como um estilo ocidental
para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente (...)" (SAID,
2007, p. 29).
Outrossim, criou-se uma profissão
(o Orientalista) para subsidiar a domesticação do objeto estudado [08]. Mas o
Orientalismo e o Orientalista não podem ser compreendidos como pura operação
unidirecional de criação do Oriente. A cultura e/ou relações de poder não são
unilaterais, mas se retroalimentam, forjando "um conjunto de restrições e
limitações do pensamento" (SAID, 2007, p. 75). Assim, Said propõe uma
relação dialógica entre as condições político-subjetivas e o conhecimento
orientalista "[d]izer simplesmente que o Orientalismo foi uma
racionalização do regime colonial é ignorar até que ponto o regime colonial foi
justificado de antemão pelo Orientalismo" (SAID, 2007, p. 72). Nesse
ponto, E. Said aponta que o Estado e a Imprensa [09] atuam, insistentemente, em
simbiose para o preparo da opinião pública em sintonia com os preceitos da
hegemonia político-cultural.
Esses, Estado e Imprensa,
contudo, não empreenderiam o êxito, sem o aporte dos intelectuais, recrutados
iteradamente entre especialistas orientalistas para chancelar a sobredita
apologia do existente e dar sua parcela de contribuição para a recolocação dos
símbolos etnocêntricos em seu tecido cultural. Ao contrário do que pode parecer
à primeira leitura, as concepções Orientalistas não prevalecem como
"ideias" que "existem apenas no reino das ideias" (SAID,
2000, p. 115). O discurso e práxis do Orientalismo sempre atuaram como um
método de intervenção para a conversão do "Oriente" em imagem
"do Ocidente/da Europa". O Oriente é tido como um problema, a ser
tolerado e suportado pelo bondoso projeto do colonizador, cuja intervenção se
dá para atender os melhores interesses do bárbaro colonizado. A missão
civilizatória colaciona e arregimenta argumentos justificadores das mais
diversas ciências: da Teoria da Modernização à Ciência Política, do Direito
Internacional às premissas do Desenvolvimento Econômico, apresentando-se como
palatável e altruísta desprendimento do colonizador (SAID, 2000).
Os fatos mundiais fazem com que a
obra "O Orientalismo" se atualize com indisfarçável e lamentável
frequência. Os exemplos, só na última década, são muitos, como os indiscutíveis
massacres no Afeganistão (2001), Iraque (2003), Líbano e Gaza (2006), Gaza
(dezembro de 2008 – janeiro de 2009), ampliando de forma exponencial, o
habitual descaso, desprezo e arrogância empreendidos contra o Outro. Com a
persistência dessa forma discursiva depreciativa dos centros
colonialistas/eurocêntricos, sempre a questionar-se "como enfraquecer e
dominar o Outro?" e a manifestar-se sob a sofisticada roupagem do
"Choque de Civilizações", Said ganha a força de um clássico, a
continuar a ser um esquema interpretativo válido para as contemporâneas
relações internacionais. Dessarte, o legado de Edward Said para as Ciências
Sociais fica na forma de dois questionamentos: (1) como é possível estudar o
Outro de forma não opressiva e não discriminatória? E, (2), como podemos
superar a coercitiva epistemologia colonial-eurocêntrica em nossas próprias
práticas sociais e científico-acadêmicas, constituindo uma vivência dos subalternos
e, até então, ausentes?
Se nos debruçarmos sobre essas
perquirições e, mesmo prevalecendo a tese da impossibilidade de uma
epistemologia autenticamente anti-colonial, mas tendo provocado uma detida
inquietação, "O Orientalismo" terá cumprido, ao menos parcialmente, o
seu papel de delação dos limites mentais de nossa sociedade. Terá feito, desse
modo, o suficiente para remover o véu de nossas estruturas de pensamento –
preconceituosas, intolerantes – e, assim, enfraquecido o seu potencial de
dominação do Outro.
Org. Rég!s
Fonte :https://jus.com.br/artigos/18477/modernidade-social-e-a-contemporaneidade-do-orientalismo
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