. Entrevista especial com Haroldo Schistek
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" A Caatinga ocupa 11% do território nacional e
mereceria, sem dúvida, um enfoque apropriado e políticas públicas feitas
exclusivamente para a área que engloba. Esta área corresponde às superfícies da
Alemanha e França juntas", constata o idealizador do Instituto
Regional da Pequena Agropecuária Apropriada – IRPAA, com sede em Juazeiro, BA.
"A Caatinga é o bioma mais frágil que temos no Brasil. A
ciência, identificando sua fauna e flora, nos mostra que não existe uma
Caatinga só, mas muitas formas, criadas pela interação de seus seres vivos com
o conjunto edafoclimático local. O clima é Semi Árido, com uma estação chuvosa
curta e longos meses sem chuva, onde a evaporação potencial supera a
precipitação praticamente em todos os meses do ano", constata, em
entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Haroldo Schistek.
Segundo ele, defensor do paradigma "Convivência com o Semi-Árido",
a "Caatinga ocupa 11% do território nacional e mereceria, sem
dúvida, um enfoque apropriado e políticas públicas feitas exclusivamente para a
área que engloba”.
Schistek avalia ainda que não se pode pensar o Semi Árido Brasileiro com
seu bioma Caatinga de forma isolada, com propostas setoriais. “A educação
escolar tradicional tem contribuído muito para espalhar uma imagem de
inviabilidade econômica, feiura e morte”, diz.
Haroldo Schistek é teólogo pela
Universidade de Salzburgo, Áustria, agrônomo pela Universidade de Agricultura
em Viena e tem Faculdade de Agronomia do Médio São Francisco em Juazeiro, na
Bahia. É idealizador do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada –
IRPAA, com sede em Juazeiro, fundado em 1990. Trabalha com assessoria
relacionada a recursos hídricos, desenvolvimento rural, beneficiamento de
frutas nativas, questões agrárias, entre outras áreas. É elaborador de
apostilas, livros, relatórios. Além disso, acompanha e coordena programas junto
de agricultores, dentro do conceito da Convivência com o Semi Árido.
Atualmente integra a Coordenação Coletiva do IRPAA como coordenador
administrativo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line
– Como podemos definir a atual situação da Caatinga? Quais os avanços e dilemas
que ainda preocupam as populações que vivem o local e os pesquisadores que
estudam o bioma?
Haroldo Schistek – A situação da
Caatinga é catastrófica. Esse bioma continua sendo o mais desconhecido do
Brasil – embora seja caraterístico nosso, só existe no nosso país.
Cientificamente tem-se avançado, mas os políticos que tomam a decisão não
querem reconhecer sua fragilidade e realizar as propostas da sociedade civil
que, de um lado, poderiam garantir a sua preservação e, de outro lado, poderiam
garantir uma renda estável para a população humana. A essência nesta proposta
se resume no paradigma da “Convivência com o Semi Árido”. A Caatinga ocupa
11% do território nacional e mereceria, sem dúvida, um enfoque apropriado e
políticas públicas feitas exclusivamente para a área que engloba. Esta área
corresponde às superfícies da Alemanha e França juntas! – imagine quantas
políticas localizadas regionalmente podemos encontrar nesses dois países e aqui
não temos, até o momento, nenhuma política consistente para a área toda.
IHU On-Line – De que maneira podemos pensar formas de preservação da Caatinga?
IHU On-Line – De que maneira podemos pensar formas de preservação da Caatinga?
Haroldo Schistek – Infelizmente, preciso
insistir num fato que todos preferem não mencionar, por ser incômodo, por tocar
em privilégios de uma minoria e de ser perigoso e, em muitos casos, até mortal.
Trata-se da questão da terra, ou melhor, do tamanho dela. A Embrapa Semi Árido
afirma que na grande região da Depressão Sertaneja uma propriedade necessita de
até 300 hectares de terra para ser sustentável, sendo a atividade principal a
criação de caprinos e ovinos. Assim, a principal forma de preservar a Caatinga
é dotar as famílias de um tamanho de terra adequado às condições de semiaridez.
Quanto mais seca a região, mais terra se precisa. E qual é a realidade?
Propriedades de dois, três, dez hectares, enquanto no outro lado da cerca uma
única pessoa possui dois ou três mil hectares. E não falo de reforma agrária,
mas de “adequação fundiária”, pois as famílias possuem terra, são da terra, mas
só precisam dela em tamanho suficiente para ter uma produção estável, poder
acumular reservas e assim suportar as instabilidades climáticas. Se for assim,
poderemos esquecer para sempre os programas famigerados como Bolsa Família,
carros-pipa e cestas de alimentos.
IHU On-Line – Existe a possibilidade de recuperação de áreas do bioma em alguns casos? O que falta para que isso aconteça?
IHU On-Line – Existe a possibilidade de recuperação de áreas do bioma em alguns casos? O que falta para que isso aconteça?
Haroldo Schistek – O grande mal que se
fez à Caatinga não vem de agora, deste ou do século passado. Vem desde a
primeira ocupação pelos portugueses e tem alguma coisa a ver com a monocultura
de cana de açúcar no litoral nordestino. O gado, indispensável para o manejo da
cana de açúcar e para a alimentação da população humana, num certo momento,
numa época que não existia o arame farpado, não podia mais ficar próximo às
plantações e foi por decreto governamental mandado para o interior. E já em
1640 se estabeleceu o primeiro curral para gado bovino no médio São Francisco,
dando assim início a uma sequência até hoje mantida: uma política concebida
fora da região, introduzindo algo não adaptado ao clima, servindo a interesses
estranhos. Não demorou e se formaram dois imensos latifúndios que ocuparam toda
a região desde o Maranhão até Minas Gerais: os morgados da Casa da Torre e
outro da Casa da Ponte. Para o povo, só existia lugar como vaqueiro, que
mantinha sua rocinha para alimentar a família, mas ele nunca poderia ser dono
daquele pedaço de chão. Essa é a origem da agricultura familiar na região.
Caatinga
pensada de forma micro
O que se precisa é uma mudança de percepção em relação à Caatinga:
devemos deixar de pensar esta região em termos macro – Brasil. Em vez disso,
pensá-la em termos micro. Tendo em vista unicamente a Caatinga e sua população
humana, encontrando soluções sustentáveis, estaremos beneficiando o bioma, os
homens e mulheres e, em última consequência, o Brasil – macro.
IHU On-Line – Quais as principais características da Caatinga?
IHU On-Line – Quais as principais características da Caatinga?
Haroldo Schistek – A Caatinga é o
bioma mais frágil que temos no Brasil. A ciência, identificando sua fauna e
flora, nos mostra que não existe uma Caatinga só, mas muitas formas, criadas
pela interação de seus seres vivos com o conjunto edafoclimático local. O clima
é Semi Árido, com uma estação chuvosa curta e longos meses sem chuva, onde a
evaporação potencial supera a precipitação praticamente em todos os meses do
ano. Em Juazeiro da Bahia, temos, por exemplo, cerca de 550 mm de chuva, mas a
evaporação potencial atinge até 3.000 mm por ano. Os solos são, em sua maioria,
rasos e de baixa fertilidade. Então, pode-se perguntar: o que fazer com um
pedaço do Brasil desse jeito, uma vez que quase não chove, e, muitas vezes, os
solos são inapropriados? Além disso, em 80% da região não existe lençol freático,
pois a natureza nos oferece uma resposta muito clara. Porém, na Caatinga há uma
diversidade de plantas e animais maior que em outros biomas do Brasil. Existem
plantas e animais que aprenderam a conviver de maneira perfeita com esse tipo
de chuva e de solo e que descansam durante os oito meses em que não há chuva,
para resplandecer de maneira inacreditável depois das primeiras chuvas numa
explosão de cores, perfumes, frutas e sementes. A convivência com o Semi Árido
consiste nisto: aprender com a natureza a realizar as atividades; criar plantas
e animais aos quais ela dá suporte e não insistir em algo que não possui a
maleabilidade genética – como é o caso do milho e do gado bovino.
IHU On-Line – No que consiste e qual a importância da produção adaptada e das formas de captação e armazenamento de água para o bioma?
IHU On-Line – No que consiste e qual a importância da produção adaptada e das formas de captação e armazenamento de água para o bioma?
Haroldo Schistek – Devemos abdicar da
ideia que o fornecimento de água para as famílias e suas criações possa trazer
algum benefício à Caatinga. À primeira vista, a água parece o fator
limitante quando, na verdade, é a capacidade de produzir forragens para os
animais e alimento para os humanos. Ela continua mantendo populações humanas e
rebanhos em áreas reduzidas. Mas, fornecendo água, há somente uma maior pressão
sobre o bioma já fragilizado.
Em relação à produção adaptada, defendemos a manutenção ou
reestabelecimento da vegetação nativa, pois a “Caatinga em pé vale mais do que
a Caatinga derrubada”. Somente em pequenas áreas, especialmente para o consumo
local e utilizando todos os preceitos agronômicos de preservação da umidade e
da estrutura do solo, pode-se pensar em plantios de roças, utilizando plantas
adaptadas às irregularidades climáticas.
IHU On-Line – No que consiste o recaatingamento e de que forma ele pode ser uma solução para os problemas enfrentados no bioma?
IHU On-Line – No que consiste o recaatingamento e de que forma ele pode ser uma solução para os problemas enfrentados no bioma?
Haroldo Schistek – O próprio termo já
quer chamar atenção de que o desafio é diferente. Poderíamos ter chamado de
“reflorestar a Caatinga”. Mas Caatinga não é uma floresta, não é estepe,
nem savana – é Caatinga mesmo. Também não se trata de criar uma reserva do tipo
Ibama. Temos um caso deste na região de Juazeiro-Sobradinho.
Querem expulsar todos os moradores para criar um parque de preservação natural.
Para proteger a Caatinga. E quem protege as famílias que têm sua base de
vida há gerações nestas áreas? Ademais, podemos afirmar com toda certeza que
estas áreas que se pretendem proteger são preservadas assim até hoje, pois
foram utilizadas no sistema de Fundo de Pasto.
Recaatingamento
O recaatingamento é um processo complexo, pois inclui amplas medidas
educativas e aprofundamento em conhecimentos sobre a natureza para as
populações. Não se trata de trazer um agente de fora, que cerque uma área e
plante mudas. No bioma, formam-se pessoas. Portanto, é necessário que cada uma
seja convencida do valor da Caatinga em pé, que seja o plantador e cuidador das
plantas e cercas nos anos seguintes. Quem se interessar pode acessar: http://www.recaatingamento.org.br/.
IHU On-Line – Quais as principais ameaças que a Caatinga enfrenta?
IHU On-Line – Quais as principais ameaças que a Caatinga enfrenta?
Haroldo Schistek – Podemos dizer que a
principal ameaça é o caminho econômico (equivocado!) tomado pelo Brasil nos
últimos anos. Nosso país se tornou campeão mundial em exportação de
commodities, e as áreas da Caatinga se tornaram objetos de cobiça para
grandes empreendimentos. Depois de alguns anos de maior calma, está agora
recrudescendo a grilagem de terra e o assassinato de agricultores familiares e
de seus representantes, quando resistem ao roubo de suas terras. No bioma,
querem fazer de tudo: usina nuclear, grandes barragens para hidroelétricas,
intermináveis áreas irrigadas para, por exemplo, produção de etanol, mineração,
parques eólicos, criação industrializada de caprinos e bovinos, entre outros.
IHU On-Line – De que maneira ela pode ser utilizada de forma sustentável? Qual o papel da população nesse sentido?
IHU On-Line – De que maneira ela pode ser utilizada de forma sustentável? Qual o papel da população nesse sentido?
Haroldo Schistek – Não se pode pensar o
Semi Árido Brasileiro com seu bioma Caatinga de forma isolada, com propostas
setoriais. A educação escolar tradicional tem contribuído muito para espalhar
uma imagem de inviabilidade econômica, feiura e morte. Ainda recentemente,
encontrei um livro didático, no capítulo sobre os biomas brasileiros, que
mostrava uma foto da Caatinga nos meses da estiagem, com a legenda
inacreditável: “Caatinga morta”. Na verdade, os arbustos e árvores retratados
somente estavam em hibernação, cheios de seiva e nutrientes, esperando apenas a
primeira chuva para se vestirem novamente em abundantes roupas de folhas e
flores. Ou seja, precisamos de uma educação contextualizada, que leve o
contexto da vida dos alunos, das plantas da Caatinga, da sua casa de adobe,
para dentro da sala de aula. Tivemos experiências magníficas nesse sentido com
os alunos preservando atenção de maneira inacreditável, sendo as faltas às
aulas quase não registradas. Materiais nesse sentido já existem. Precisamos que
o Ministério da Educação e Cultura faça uma volta de 180 graus em termos de
políticas educacionais, pois não é somente necessário que exista material
didático apropriado. É indispensável que a formação de professores nas
universidades seja no sentido da contextualização e que a formação continuada
do corpo docente acompanhe a proposta. A “Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional” nos dá cobertura total nesse sentido.
Criação de animais
A Caatinga representa um pasto nativo de grande valor nutritivo,
muito apropriado para a criação de animais de médio porte – menos para gado
bovino, que pouco aproveita o pasto, consome muita água e causa ainda erosão no
solo, por causa de seu maior peso. No entanto, faz-se necessário evitar o
superpastoreio, através da análise criteriosa de capacidade de suporte e de
fornecimento de alimento suplementar na segunda metade dos meses secos. Mas é
preciso ficar atento à forma organizacional.
Característica da chuva na Caatinga
A característica da chuva é irregular em dois sentidos: no tempo e no
espaço geográfico. Quer dizer, nunca se sabe quando se terá outra chuva nem em
que área ela cairá. Essa irregularidade é muito acentuada. O Fundo de Pasto,
forma tradicional de posse de terra no Semi Árido, remoto desde as Sesmarias,
atende a esta característica. As áreas de pasto não são individualizadas, não
possuem cercas para separar cada propriedade. Os animais de todos os
proprietários pastam livremente em toda a área, deslocando-se sempre para
aquelas manchas onde choveu recentemente. Com isso eles evitam superpastoreio e
garantem animais bem alimentados. Organizando dessa maneira a terra, de forma
coletiva, a área necessária por família pode ser bem menor, mesmo na Depressão
Sertaneja: entre 80 e 100 hectares. A área do Fundo de Pasto fica sob a
responsabilidade de uma associação, dos próprios donos. Temos belos exemplos de
como essa forma organizacional eleva a consciência ambiental e proteje a
Caatinga.
Diversidades
Além da criação de animais, existem grandes riquezas extrativistas, como
o umbu ou a maracujá do mato que, beneficiado em forma de geleia,
doce e compota, até já conquistaram o paladar europeu.
Encontramos também, como em nenhum bioma brasileiro, uma grande
diversidade de plantas medicinais, com uso industrial, ainda não explorada ou
apenas de maneira irregular. Já o potencial lenheiro é duvidoso e, a nosso ver,
não deve ser cogitado em se tratando de Caatinga.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Haroldo Schistek – O Semi Árido
Brasileiro era algo desconhecido para a percepção geral e o IRPAA desmistificou
isso. Sempre se falava “no Nordeste tem seca”. Mas Nordeste é Maranhão com sua
região pré-amazônica; é a região com as chuvas de Belmonte da Bahia com seus
3.000 mm por ano e do oeste baiano com chuva tão regulares que parece que tem
um contrato com São Pedro. Isso foi parte da nossa campanha nos primeiros dez
anos de existência do IRPAA: dizer que a região da “seca” é o Semi Árido que
fica na maior parte no Nordeste, mas abrange também parte de Minas Gerais.
Programas para o Semi Árido
Fiquei
contente quando Dilma, em seu discurso de posse, falou em programas
específicos para o Semi Árido e não mais Nordeste. Para dar
visibilidade, criamos o nome “Semi Árido Brasileiro”, como iniciais em
maiúsculo. Então, devemos distinguir quando se fala de uma região semiárida ou
quando fala do Semi Árido Brasileiro. Até a sigla criada – SAB –
já se popularizou.
fonte:http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/508737-caatingaumbiomadesconhecidoeaqconvivenciacomosemi-aridoqentrevistaespecialcomharoldoschistek
Org . Reg!s
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