Pretendo neste breve texto apresentar alguns dos aspectos problemáticos
presentes no componente Projeto de Vida proposto pelo Ministério da Educação.
Este traz mais problemas do que soluções para a formação dos estudantes
secundaristas e, consequentemente, para maior parte da sociedade brasileira.
Tentarei fazer isso por seção, de modo a tornar mais compreensível e organizado
o que busco destacar. Inicio inferindo que há, na proposta desse componente
curricular, erros que irão prejudicar ainda mais o ensino médio brasileiro.
Erros de falta de definições; de cunho teórico-metodológico, pedagógicos, de
gestão de pessoas e erros de matriz curricular. Além de trazer uma perspectiva
danosa para um país marcado por grandes desigualdades de acesso às condições de
realizações de projetos pessoais.
O Projeto de Vida Primeiro aspecto a ser
considerado é que o Projeto de Vida não é uma disciplina como as demais que
estão presentes no ensino médio. Não é resultado de um campo disciplinar ou área
de conhecimento científico, como são a Sociologia, a Filosofia e a História.
Trata-se de uma proposta temática pouco clara e sem bases teóricas e
epistemológicas definidas. Isso abre caminho para que seja apresentada aos
estudantes de duas formas: a) uma espécie de autoajuda e; b) um retalho de
abordagens derivadas de quaisquer tipos de conhecimento, inclusive do senso
comum. Não podemos olvidar que escola deve ser espaço de transmissão de
conhecimentos científicos sólidos. Uma ciência torna-se, em geral, uma
disciplina escolar após passar por sua institucionalização no campo acadêmico.
Ainda que os temas juventude, trabalho e escola estejam presentes nas Ciências
Humanas, são ainda temas e objetos de estudos e não áreas de conhecimentos.
Importa destacar que a Projeto de Vida, como proposto pelo Ministério da
Educação (MEC), não é uma transposição da Sociologia da Juventude, do Trabalho
ou da Educação. Muito longe disso; suas raízes estão nos “ventos do mercado”,
esses carregados da crença na meritocracia, no individualismo e no
empreendedorismo.
O componente, como proposto pelo MEC, é uma aula de coach. Ou
seja, a proposta do MEC não traz bases teórico-metodológicas e pedagógicas
sólidas. Trata-se de um experimento advindo do mercado e seu interesse em mão de
obra semiqualificada – basta observar seus principais defensores para entender
suas intenções. Os impactos sobre a carga horária das disciplinas O MEC vem, por
meio da (De)Reforma do Ensino Médio, orientando os estados para que tenham em
seus currículos estaduais o Projetos de Vida nos três anos do ensino médio. A
criação de mais um componente curricular tem impacto sobre a distribuição de
carga horária das demais disciplinas, levando a redução de oferta de disciplinas
consolidadas, tais como História, Geografia, Sociologia e Filosofia. É sabido
que os docentes que lecionam Sociologia e Filosofia já possuíam, em geral, uma
carga horária semanal reduzida nas séries de ensino médio, o que os levam a ter
que lecionar para um grande número de turmas e de escolas (isso significa mais
atividades, menos tempo para planejamentos e menor contato com os estudantes),
situação que gera condições precárias de trabalho e de ensino-aprendizagem
(PEREIRA; CAES, 2019).
Com a introdução do Projeto de Vida essa condição
torna-se ainda mais precarizada, já que há uma tendência de reduzir ainda mais a
carga horária dessas disciplinas. Ou seja, temos a introdução de um componente
curricular não sistematizado cientificamente e a precarização da oferta de
outros que já estão consolidados no campo científico. Aqui o mais é menos. É
falso que Projeto de Vida atrairá a atenção dos estudantes O principal argumento
de quem acredita que Projeto de Vida atrairá a atenção dos estudantes está na
falácia de que sendo tal componente voltado à suas vidas práticas a torna mais
interessante. Tal argumento ignora que disciplinas como Filosofia e Sociologia
já fazem diálogos diretos como a vida dos estudantes. O mais recorrente nas
aulas de Sociologia, por exemplo, é o docente partir da realidade concreta
sentido às contribuições dessa Ciência (BODART, 2021a).
No estado do Espírito
Santo tive a experiência de lecionar, entre 2010 a 2012, um componente
curricular com a mesma proposta, porém intitulada Juventude, Educação e Trabalho
(JET). Pelos resultados ruins alcançados e pela ampla reclamação dos docentes
foi abandonado pela Secretaria de Educação daquele Estado. Na ocasião tentei
fazer do limão uma limonada, mas o resultado era infinitamente inferior quando
esses temas eram apresentados como conteúdos de Sociologia, já que esta
proporciona maior solidez nas abordagens, distanciando as fantasias que podem
rondar os temas das aulas. Tal como o Projeto de Vida, JET poderia ser lecionado
por qualquer docente, o que maximizava seus problemas. O discurso era
semelhante, despertar nos jovens as competências básicas necessárias para o
ingresso e a permanência no mercado de trabalho, estimulando habilidades
empreendedoras que os ajudem a efetivar seus projetos pessoais e coletivos.
O
Projeto de Vida não foi pensado para o sucesso dos pobres É certo que todos nós
precisamos ter projetos pessoais e usar nossa capacidade limitada de
agenciamento para alcançá-los. Contudo, ignorar que há uma estrutura material
que limita nossas escolhas e capacidades de agir em certas direções é
equivocado. A consciência das limitações estruturais é o primeiro passo para
pensar estratégias de superação, embora nem sempre essas são alcançadas. Quando
maior a privação material e cultural dos estudantes, menor é sua capacidade de
escolha. Só há escolha dentro do horizonte disponível: um estudante que nunca
ouviu falar de gemologia, por exemplo, não terá oportunidade de ter no “legue”
de escolhas se especializar em pedras preciosas. Uma estudante negra que mora na
periferia do Rio de Janeiro não terá as mesmas condições e oportunidades de ser
uma apresentadora de TV do que uma estudante enquadrada nos “padrões europeus de
beleza”, cujos pais são donos dessa emissora. Dizer para a estudante negra e
periférica que se ela fizer um “bom projeto de vida” alcançará seu objetivo, é o
mesmo que lhe imputar a responsabilidade de “seu fracasso”. Projeto de Vida pode
fazer sentido para os abastados que têm como obstáculo apenas o desinteresse.
Para a população pobre, o desinteresse é resultado da falta de oportunidade, do
excesso de restrições estruturais ao acesso às coisas básicas, como emprego,
alimentação e moradia. Há na proposta o empenho em ignorar intencionalmente que
somos seres históricos, inseridos em estruturas sociais pré-estabelecidas e o
desenvolvimento de cada um, e de cada uma, depende do desenvolvimento coletivo
da sociedade. O Projeto de Vida como projeto de desresponsabilização do Estado O
discurso presente no Projeto de Vida, como proposto pelo MEC, busca transferir a
responsabilidade do insucesso aos indivíduos.
Os discursos da meritocracia, do
empreendedorismo e da autodeterminação visa apagar a responsabilidade do Estado
sobre o desenvolvimento da sociedade como um coletivo. Sob esses discursos o
fracasso ou o sucesso são frutos exclusivos dos indivíduos. Como a contribuição
do componente curricular em questão para mudar o status quo é inexistente,
servirá apenas para desresponsabilizar o Estado da exclusão social que
historicamente e estruturalmente aniquila maior parte da sociedade brasileira,
especialmente aquela que depende da escola pública para tentar mudar em alguma
medida suas condições de vida.
Projeto de Vida é a transposição dos discursos
mercadológicos para as escolas: reduzir o papel do Estado e deixar os indivíduos
se digladiarem entre si para ter um lugar à sombra. As crises do mercado de
trabalho geradas pelo Neoliberalismo passam a entrar na conta dos esforços
individuais. O desemprego, a pobreza e a falta de acesso aos bens de consumo são
convertidos em falta de interesse, de planos e de vontade de cada um e cada uma.
O Projeto de Vida e a instabilidade docente Aqui há outra falácia. Na verdade, a
ampliação da carga horária do ensino médio poderia ser aproveitada para ampliar
as aulas das disciplinas com carga horária reduzida, dando melhores condições
para os(as) professores(as) de ministrarem suas disciplinas, inclusive podendo
trabalhar temáticas ligadas aos temas juventude, trabalho e escola. Por não
haver definições de quem estaria habilitado a lecionar[2], Projeto de Vida se
tornará um “puxadinho” para qualquer docente que tiver a “benção” do(a)
gestor(a) da escola, abrindo espaço para a perda de autonomia docente e práticas
clientelísticas. Sendo um componente experiemental e sem tradição, o Projeto de
Vida não proporcionará abertura de vagas para novas concursos públicos. Pelo
contrário, ao diminuir as aulas semanais das demais disciplinas, essas acabam
tendo suas vagas reduzidas em contratações de docentes efetivos.
Essa situação
tenderá a maximizar a rotatividade dos(as) professores(as), ampliando sua
instabilidade no trabalho, impactando sobre suas vidas profissionais (e
pessoais), dificultando uma oferta sistemática e contínua dos conteúdos
definidos pela os componentes curriculares ao longo dos três anos.
Há saída? A
saída é a revogação da (De)Reforma do Ensino Médio e a convocação da sociedade e
das entidades científicas para discutir um projeto educacional humanizado. A
reforma que temos desumaniza a educação e seus efeitos são nocivos (BODART,
2021b) e, por isso, precisa ser abortada juntamente com o atual governo.
Contudo, enquanto isso não acontece é necessário pensarmos como minimizar os
impactos do Projeto de Vida, o que passa necessariamente pela desvirtuação de
seus propósitos ao fecharmos as portas da sala de aula. É necessário questionar
a meritocracia e o empreendedorismo a partir das muitas contribuições dos campos
científicos. Antes de levar os estudantes a pensar na vida que pretendem ter,
dar-lhes condições de entender suas vidas atuais a partir de uma visão
figuracional da realidade social (BODART, 2021a) parece ser o caminho mais
sensato e justo; para isso, a Sociologia é uma importante ferramenta
teórico-metodológica. Tentar atuar por dentro parece ser o caminho viável no
momento, o que demanda que o(a) professor(a) busque tornar o componente
curricular Projeto de Vida algo distante da prática de coach. Somado a isso,
precisamos denunciar e evidenciar os erros presentes na (De)Reforma do Ensino
Médio.
Referências bibliográficas
BODART, Cristiano das Neves. Usos de canções
no ensino de Sociologia. Maceió: Editora Café com Sociologia, 2021a.
BODART,
Cristiano das Neves. O erro de desumanizar a Educação: o desastroso projeto da
Reforma do Ensino Médio. Blog Café com Sociologia. dez. 2021b. Disponível em:
https://cafecomsociologia.com/desumanizar-reforma-do-ensino-medio/
PEREIRA,
Alysson Cipriano; CAES, Valdinei. A Sociologia no ensino médio: a diferença da
carga horária semanal no Paraná e no Mato Grosso. In: BODART, Cristiano das
Neves;
SAMPAIO-SILVA, Roniel. O ensino de Sociologia no Brasil, vol.2. Maceió:
Editora Café com Sociologia, 2019.
Como citar este texto: BODART, Cristiano das
Neves. O Projeto de Vida como componente curricular do ensino médio:
aprofundamento da irresponsabilidade do Estado e os danos ao ensino médio. Blog
Café com Sociologia. jan. 2022.
Notas [1] Doutor em Sociologia (USP). Docente do
Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade
Federal de Alagoas (Ufal). E-mail: cristianobodart@gmail.com
[2] Na verdade, não
há habilitação nas universidades para Projeto de Vida por não ser derivado de
uma área de conhecimento. Criação de uma licenciatura com esse fim seria
desastroso pela falta de institucionalização. É sabido que em Minas Gerais
algumas instituições vêm tentando incluir no Plano Político Pedagógico de Curso
de Ciências Sociais disciplinas voltadas ao Projeto de Vida; nos resta saber
quais serão os aportes teóricos e se o MEC permitirá abordagens que fogem do
empreendedorismo.
Org. Regis
Fonte : https://cafecomsociologia.com/
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